sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

"QUER VOAR O MESMO TANTO?"

Artigo publicado no MANDACARU - informativo da associação 
dos economiários do Ceará, edição de abril de 1983.
Não me lembro se foi promoção da prefeitura ou iniciativa popular; só me lembro que anunciaram pela televisão que um grupo de moradores da Praia de Iracema estava a colorir os muros do bairro, enchendo de graça aquela paisagem já tão encantadora.

Nas inúmeras vezes que passei por aquelas ruas, assim como quem vai para o Estoril, não me cansei de parar para apreciar o painel composto sobre aqueles muros. Era como se pudéssemos ter poesia pintada sobre paredes; pois era isso mesmo que eu sentia ao ver, assim em cores, os sentimentos de crianças e adultos, que se juntaram em um dia único na história da nossa Praia de Iracema para encher aqueles muros de gravuras e versos; dos quais, entre tantos outros, lembro-me claramente de um enorme peixe, de um trapezista azul, de uma janela aberta para o mar e do verso, que sempre me dava arrepios ao lê-lo, "QUER VOAR O MESMO TANTO?", de autores que nunca ousaram assinar, por pura modéstia.

Qual não foi meu espanto, quando passando por aquelas mesmas ruas, já diminuindo a marcha do carro, preparando-me para apreciar mais uma vez aquele arsenal de poesia, vi, embora custasse a acreditar, que alguém, talvez não tão anonimamente, mandara caiar os muros, apagando por completo tantas obras primas.

Fico a pensar que motivos levariam homens a destruir tamanho patrimônio público, que direitos lhes eram dados para tanto, que justificativas - inaceitáveis - nos dariam. Sei que os muros pertenciam a alguém, mas a poesia não. A arte não tem dono e, no entanto, alguém se apossa dela para destruir. Desse modo fica difícil voar; nem que seja um tantinho assim.

domingo, 5 de janeiro de 2020

EU ESTUDEI NO INSTITUTO NÓBREGA


Naquele sábado à tarde revi minha infância nos olhos dos meus amigos. Foi em um encontro de colegas de colégio de há quase meio século. Não sei como funciona isso na cabeça de vocês, mas a minha novamente se impregnou da atmosfera que só aquela escola podia nos propiciar.
Verdade é que não temos mais as mesmas caras, os mesmos corpos e as mesmas mentes, mas com a turma quase toda ali no encontro, acompanhados da diretora e de dois professores, juntos, parecia tudo muito igual. Alguém até lamentou porque as coisas mudaram com o tempo; eu também tenho saudade de muitas daquelas coisas boas, mas não lamento que tenham mudado, ao contrário, regozijo-me por ter vivido aqueles momentos para poder lembrar deles agora.
Hoje tenho consciência que aqueles não eram tempos fáceis, só depois entendi porque alguns alunos tiveram que se transferir daquela escola para escolas públicas e daí veio o reconhecimento do esforço que meus pais fizeram para me manter lá. Certo dia, tive oportunidade de dizer a eles como eu fora privilegiado pela educação que eles haviam me proporcionado.
 No instituto Nóbrega sorvi todas as sementes que polinizavam naquela atmosfera de desafio e de acolhimento, de austeridade e de generosidade, de medo e de coragem, de vigilância e liberdade; cultivei o desejo de que houvesse “livros e mais livros no mundo” porque lá aprendi que os livros eram as fermentas para igualar as pessoas e se hoje tenho a consciência de que o desenvolvimento social só é possível por meio da educação - “para os olhos dos povos abrir” - é porque sei que “a treva é um mal tão profundo que estrangula a esperança e o porvir”.
No sábado revi minha infância pelos olhos daqueles amigos e consolidei a certeza de que hoje sou um adulto forjado naquela criança que merendou os cachorros quentes feitos pelo Alberto, que ouviu os conselhos da austera Dona Ione, que se apaixonou pela língua portuguesa nas aulas  da Dona Zilma e da Dona Mirtô, que  entendeu matemática com a Dona Selma, que encantou-se por Estudos Sociais com o Professor Nogueira e com a Professora Ângela, que internalizou as ciências com o Professor Roberval, que se arriscou nas artes com o Professor Renato, que descobriu outro idioma com o Professor Haroldo, que debateu moral e cívica com a Professora Rocicler e que aprendeu tanto mais com outros que até posso não lembrar os nomes, mas que certamente participaram dessa construção, porque eu estudei no Instituto Nóbrega.